A Arte em consonância com os Três Fatores de Revolução da Consciência liberta.
Para conhecer e aprofundar-se visite os sites
http://amormaior.ning.com/
www.conscienciaignea.org
www.rumoaoser.org
Todos os temas discutidos devem estar dentro desta filosofia.

Orfeu na poesia de Virgílio

A descida de Orfeu aos Infernos é uma das passagens mais tocantes das Geórgicas (poema de longo de Virgílio, dividido em quatro cantos, tendo como tema a agricultura; Virgílio é também é autor da Eneida, poema sobre a fundação de Roma).
O quarto livro das Geórgicas trata da apicultura. Conforme se vê na postagem abaixo, Aristeu perdeu seus enxames por ter causado a morte de Eurídice, esposa de Orfeu. No poema de Virgílio, Aristeu, após perder os enxames, recorre à sua mãe, a ninfa Cirene; ela o leva até a caverna onde vive o deus marítimo Proteu, que conhece passado, presente e futuro; é Proteu que conta a Aristeu a causa da morte das suas abelhas entre os versos 453 a 527 do livro IV (a tradução é nossa):


Não é a toa que os deuses
descontam em ti sua ira;
pagas pro grave delito:
é Orfeu, miserável sem ter
merecimento, que suscita
(em não obstando o Destino)
tais padecimentos para ti,
por cônjuge arrebatada
cheio de cólera.

Ela que,
enquanto, na beira do rio,
fugia de ti, de repente,
pisou em ingente serpente
hidra, que guarda os barrancos,
não vista no alto matagal,
falecendo jovem.

Ao coral das Dríades, suas
companheiras, as cordilheiras
supremas juntaram o clamor:
choram montanhas rodopeias,
alta pangeias, do mavórtio
Reso as terras e dos getas,
rio Hebro e a ática
Orítia.

E ele, na cava guitarra
desafogando triste amor,
a ti, doce esposa, a ti,
consigo mesmo no litoral,
a ti, vindo o dia, a ti
se pondo, cantava.

Através das grutas tenárias,
portas para profunda Dite
e para bosques com caligem
de negros temores, ingressou,
foi aos manes e ao Monarca
tremendo, amansou corações
que desconhecem as orações
humanas.

Comovidas pelo seu canto,
dos imos rincões do Erebo
vinham sombras tênues, fantasmas
carentes de luz, quantas aves,
muitos milhares, a floresta
abriga, quando chega tarde
ou chuvas invernais expulsam
dos montes;

mães e maridos, magnânimos
hérois cuja vida foi do corpo
arrebatada e crianças,
inuptas donzelas cremadas
jovens ante os olhos dos pais,

que estão presos por lamaçal
negro e disformes tabuas
do Cócito, pântano d' águas
paradas e desagradáveis,
limitadas pelo Estige
em nove voltas espalhado.

A própria casa estarreceu,
assim também finados no mais
íntimo Tártaro e cobras
azuladas emaranhadas
no cabelo das Eumênides,
foram contidas as três bocas
abarcantes do cão Cérbero
e o vento conteve o giro
da roda de Ixiôn.

Quando já voltava,
evitados todos perigos
e Eurídice resgatada
alcançava os superiores
ares, logo atrás seguindo,
conforme lei que instituíra
Prosérpina, então súbita
demência tomou o amante
incauto (muito perdoável
se soubessem manes perdoar),
parou, sua Eurídice já
sob a própria luz, esquecido,
ai!, ânimo ansioso, olhou;
todo trabalho foi perdido,
rompido pacto com tiranos
impiedosos e, por três vezes,
grandes estrondos nos pântanos
do Averno foram ouvidos.

E ela:
Quem é que me desencaminha,
mísera, perguntou, e a ti
também, Orfeu? quem tem tamanho
furor? todavia, Destino
cruel me chama de volta, a luz
que surge em sono se fecha;
agora vai; eu suportarei
ingente noite circundante,
inválida estendendo, ai!,
estas mãos que já não são tuas.

Disse e, de repente, diante
dos olhos, tal qual a fumaça
tênue misturada às brisas,
fugiu além e não mais o viu
nem podia mais atravessar
o pântano interditado
do Orco;

ele, que em vão procurava
abraçar a sombra e tanto
tinha para dizer; que fazer,
se duas vezes foi esposa
arrebatada? qual lágrima
aos manes, quais são as palavras
que hão de comover aos numes?
quando ela já navegava,
em barca, o frio Estige.

Sete meses consecutivos
transcorreram inteiros, ele
sob alto penhasco próximo
às ondas desertas do rio
Estrimônio, em pranto tudo
revia no gélido antro;
e amolecia os tigres,
fazia carvalhos moverem
com canções.

Tal qual, do álamo à sombra,
Filomela pranteia; busca
filhotes perdidos, que duro
arador, no ninho implumes
vendo, pegou; chora à noite;
pousada no galho repete
a canção infeliz e todo
o lugar longe impregnado
fica com seus tristes lamentos.

Sem sexo e sem companheira
para acalmar os ânimos,
sozinho percorria gelos
hiperbóreos, o Tanaís
nevado e os campos rifeus,
que das geadas nunca ficam
viúvos, a arrebatada
Eurídice buscando e dons
desfeitos de Dite;

as mães cicônias, cujo dote
foi desprezado, em sagrado
furor divino e noturnas
orgias de Baco, pedaços
esquartejados espalharam
do jovem nos campos.

Então, cabeça arrancada
dos ombros de mármore, quando
descia em meio às águas
do oágrio Hebro, virando,
Eurídice, com sua voz
e frígida língua, mísera
Eurídice, chama; barrancos
todos do rio repetiram:
Eurídice, ó Eurídice!

[texto publicado em nosso livro As Roçarianas - Releitura das Geórgicas de Virgílio, páginas 401 a 411]

Nenhum comentário:

Postar um comentário